"Entre muitos milhões de brasileiros, alguns milhares serão beneficiados pelo "coronavoucher", o auxílio emergencial cuja paternidade é pedida pelo Executivo e pela Câmara dos Deputados. Porém muitos dos beneficiários não deveriam ter acesso pelo simples fato de não se enquadrarem nos requisitos para receber os R$ 600. Pelo menos não na vida real, já que no papel a omissão de informações agora ou no passado permite que o auxílio seja pago, ainda que a crise da Covid-19 não tenha gerado um problema financeiro.
Após o início do pagamento do benefício, sobraram exemplos nas redes sociais de quem se vangloriou de tê-lo recebido sem ter direito. Um dos exemplos mostrava um carro de supermercado com caixas de cerveja, carne e carvão. O que era para evitar a fome de uma família estava ali, resumida pela infâmia de quem não consegue enxergar além da própria mesquinhez. Quando recebi as imagens, até pensei em divulgá-las para gerar constrangimento. Mas já entendi que essa pedagogia há muito deixou de funcionar no Brasil. Pena que esses mesmos hipócritas se travestem de "cidadãos de bem" quando o assunto é atacar o sistema político.
Não que nossos políticos sejam exemplares na conduta, especialmente com o dinheiro público. Esse momento do coronavoucher explicita que tudo o que criticamos neles é, na verdade, a imagem e semelhança de um povo como o brasileiro. Aqui temos bandidos de estimação e também flexibilidade para pequenas corrupções, que acumuladas ao longo de uma vida criam um monstro que, por enquanto, chamamos de nação. Brasília não é o grande problema do Brasil. Ela é o reflexo de nossa população, por isso insistimos tanto em criticá-la.
No domingo, durante uma live que prometia ser bombástica, vi um corrupto condenado pela Justiça sugerir que existia um homem incorruptível no país. A transmissão não passou de uma encenação grotesca do paraíso idílico em que muita gente acha que vivemos. Na vida real, há pouco espaço para incorruptíveis e uma parcela expressiva da população finge ser contra atos assim até que haja uma oportunidade de fazê-lo. Essa vida é dura e crua, simultaneamente.
Para servir de alento, a crise do novo coronavírus também mostra outras facetas do povo. Aquele que ajuda o próximo, mesmo que ele não seja tão próximo, e age como na parábola do bom samaritano. São nessas pessoas que devemos apostar nossas fichas. Talvez um dia elas se sintam confortáveis para gerir o nosso país. Espero sobreviver para ver esse dia. E aí sim comprar cerveja, carne e carvão para celebrar que chegamos ao futuro. Com dinheiro que todos realmente mereçamos."