A função de conselheiro tutelar é de ser o guardião das garantias e dos direitos de crianças e adolescentes em todo o Brasil, mas essa nem sempre é uma missão fácil. Basta jogar em sites de busca para brotarem notícias de conselheiros agredidos e ameaçados pelo simples exercício da função. Eduardo Rezende, conselheiro tutelar na região administrativa de Ceilândia (DF) há seis anos, entrou recentemente para a estatística ao ser ameaçado de morte pela família de um tutelado.
Segundo ele, esse caso o deixou satisfeito pelo resultado, mas ao mesmo tempo assustado. “Há alguns meses, um casal de moradores de rua se hospedou temporariamente em um hotel na região e a mulher estava grávida. Eles não fizeram o pré-natal, não tiveram qualquer cuidado e a senhora deu à luz a criança no próprio hotel. Após 40 dias, essa criança infelizmente veio a óbito”, lembra.
O casal, que também tinha outra criança de aproximadamente dois anos de idade, foi denunciado por crime qualificado, com aumento de pena pela morte de criança menor de 14 anos. “Fomos chamados à delegacia e tivemos que fazer o acolhimento institucional da criança de dois anos. Fizemos isso numa sexta-feira. Na segunda-feira da semana seguinte, o companheiro dessa senhora esteve no conselho e me ameaçou de morte.”
Ainda de acordo com Eduardo, o pai da criança chegou com uma mochila na frente do corpo e com as mãos entre a mochila e a camisa, como se segurasse algo. “Coincidentemente eu não estava no dia, mas ele disse que ia me encontrar e me ensinar como ‘tomar criança’ das famílias”, relata.
E não parou por aí. Mesmo com boletim de ocorrência registrado na delegacia, o homem voltou a ameaçar o conselheiro. “Comuniquei o fato aos policiais, que o levaram. Mas ele desmentiu tudo, dizendo que só tinha ido ao conselho pedir informações.”
O depoimento de Eduardo Rezende não é isolado. Por conta das ameaças sofridas todos os dias por conselheiros tutelares, as coisas mudaram em relação às garantias de direitos da categoria. “Quando alguém faz uma ameaça ao léu, jogada ao vento na hora da fúria, é uma coisa. Mas quando ele reiterou a ameaça, confesso que fiquei preocupado. Ajuizei uma ação penal, fui convocado para uma audiência, mas em razão da pandemia ela não aconteceu. E por ser morador de rua, não teriam o paradeiro dele”, lamenta.
Mas de tudo isso ficou uma grande conquista para os conselheiros. Um grupo do DF realizou uma manifestação após o ocorrido e, em conversa com a Secretaria de Justiça, conseguiu que o conselheiro ameaçado pudesse ficar em teletrabalho num período de 30 dias. “É uma coisa que na história dos conselhos não havia nem previsão legal. Em razão dessa ameaça sofrida por mim, os demais conselheiros do DF ameaçados de morte, diante da apresentação do boletim de ocorrência, podem solicitar o afastamento pelo período de 30 dias”, destaca Eduardo.
Membro da Associação de Conselheiros e Ex-Conselheiros Tutelares do DF (ACT-DF) e representante Titular do DF no Fórum Colegiado Nacional de Conselheiros Tutelares (FCNCT-DF), Raisa Lopes também já passou por maus bocados. “Já fui agredida dentro do meu ambiente de trabalho tanto por famílias quanto por adolescentes. Quebraram meus óculos e meu celular, levei tapa e cusparada”, conta.
“Isso não acontece sempre, mas acontece porque lidamos com conflitos familiares, com maus tratos, com situação de agressão sexual, de violência doméstica. O conselho perpassa por várias áreas, mas não é isso que vai diminuir nosso trabalho, sou muito grata pela minha função”, garante Raisa.
Falta de conhecimento
No município de Águas Lindas de Goiás (GO), a presidente do conselho tutelar local, Graziella da Silva Rodrigues, relata que a maior dificuldade está na falta de informação da população em relação ao trabalho do órgão. “Já aconteceu de vereador, policiais e professores me ligarem e passarem casos para gente que não são nossa atribuição. Digo que 99% da população aqui não sabe o que a gente faz”, arrisca.
Em relação às ameaças, Grazi, como é conhecida pela comunidade, diz que já perdeu as contas de quantas sofreu. “Foram diversas vezes, é constante. Nunca registrei ocorrência porque a maioria é feita no calor do momento, mas já tivemos que chamar a polícia.”
Um dos casos mais marcantes para a conselheira tutelar, que está no cargo há um ano, foi de um pai denunciado pela própria filha. A pequena, de apenas dez anos, sofria abusos sexuais. “Ele ficou muito nervoso, queria entrar no conselho para tirar a menina de lá. Ele nos ameaçou, ficou por horas rondando o prédio, passando de carro. Que eu tenha conhecimento, foram pelo menos dois dias desse jeito. Fiquei bem receosa”, confessa.
Graziella afirma que desempenha o trabalho com amor, mas que muitas vezes teme pela segurança dela e da família. “Eu moro em Águas Lindas, meu marido trabalha lá, minhas filhas estudam lá. Então, toda vez que lido com alguma situação dessa, eu tento explicar que meu trabalho não é punir, mas ajudar.”
Na opinião do especialista em segurança pública e privada Leonardo Sant’Anna, o ente público precisa olhar pelos conselheiros e até mesmo capacitá-los para identificar possíveis situações de risco durante o atendimento, como identificação da área onde vai atuar e características do agressor (a).
“O modelo atual de proteção não é o que mais se equilibra com a possibilidade de risco desses conselheiros e conselheiras, devendo haver uma reavaliação governamental sobre a forma de haver mais recursos ligados à defesa de quem atua nessa área. Isso se torna mais evidente com a impossibilidade de ter o acompanhamento de policiais em muitas das tarefas e atividades desempenhadas pelos membros dos conselhos”, observa.
Antes, segundo Leonardo, o conselheiro era visto apenas como uma figura de caráter administrativo. “Agora, existe um protagonismo maior desse público a partir do encorajamento de denúncias referentes a violências, em especial as de caráter doméstico. E esse volume aumentado de denúncias e atuações determina uma imediata mudança de comportamento e posicionamento de conselheiros e conselheiras, já que passaram a ser possíveis vítimas de violência semelhante à direcionada aos menores que devem ser protegidos. E essa violência tem sido negligenciada e tida como invisível”, aponta.
Segurança
A consultora de Assistência Social e Direitos Humanos na Confederação Nacional de Municípios (CNM) Rosângela Ribeiro frisa que a pauta de segurança pública é de responsabilidade da União, dos estados e do DF. “Os municípios contam com guardas municipais, mas não com contingente de Polícia Militar”, avisa.
A sugestão, segundo a consultora, é um trabalho integrado entre os conselhos e Poder Judiciário e Ministério Público, por exemplo, a fim de garantir o acesso ao direito de crianças e adolescentes e para que haja, também, a garantia de segurança do trabalhador. “Se o conselheiro recebe uma denúncia como violência sexual ou trabalho infantil, que configuram crime, ele precisa se articular com algum órgão de segurança. Quando houver qualquer tipo de ameaça à integridade física, que o conselheiro possa acionar esses órgãos de segurança – mas lembrando que o município tem esse limite em relação a essa competência dentro da estrutura federativa”, pontua Rosângela.
“A alternativa é trabalhar na perspectiva das parcerias, para que seja garantida a segurança do conselho tutelar no seu fazer profissional”, acrescenta. O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (Conanda) emitiu, em 2015, uma recomendação às Secretarias de Segurança Pública estaduais e do DF para que garantam a aplicação da não violência aos conselheiros tutelares no exercício das atribuições.
“É um princípio para que se reforce essa cultura de que o conselheiro tutelar é um membro da comunidade. Ele tem uma função social relevante e precisa ter condições para exercer suas funções”, decreta a assistente social.
Em caso de ameaça ou agressão de qualquer tipo, o conselheiro ou conselheira deve acionar os órgãos competentes de segurança pública. “Além disso, é importante que haja um trabalho de base em toda e qualquer comunidade para democratizar a atuação do conselheiro tutelar, para que ele possa se sentir seguro na região. É preciso tornar mais efetiva a ideia de que crianças e adolescentes são pessoas com direitos e que sua condição de desenvolvimento não as torna inferiores a nenhum adulto. A partir do momento que a gente democratiza essa ideia, fazendo-a circular em todos os lugares, a gente também caminha num movimento para garantir a segurança do conselheiro tutelar”, finaliza Rosângela.
Em caso de abuso e negligência contra crianças e adolescentes, denuncie. Entre em contato com o conselho tutelar da sua cidade, com as polícias Militar e Civil, Ministério Público e pelos telefones Disque 100, Disque 181 ou Disque 156.