Quando uma multidão de, aproximadamente, 300 crianças marchou pelas ruas do bairro de Roma, em Salvador, carregando tijolos nas mãos ou sobre a cabeça, a polícia baiana se envolveu com o intuito de descobrir que movimentação era aquela que estava bloqueando a rua, sem as devidas licenças. Era década de 70 e, por trás do mini motim, estavam as mentes inteligentes de duas mulheres: Maria Rita de Sousa Brito Lopes Pontes, mais conhecida como Santa Dulce dos Pobres, e sua aliada e amiga, Maria José Simões Santa Barreto Costa, chamada carinhosamente de Pró Lia. Juntas, ambas começaram – daquela maneira singela – uma campanha pela construção do que hoje é o Complexo Hospitalar Irmã Dulce. No próximo dia 13 de agosto, a igreja celebra a santa baiana e seus milagres.
Com 80 anos, Pró Lia, ainda bastante lúcida, lembra com admiração do que fez, no auge dos seus 40 anos, com a ajuda dos alunos da Escola Santa Rita. “Lembro do choro e da alegria dos meninos, a brincadeira, alguns tijolos quebrados no chão, a polícia fechando a rua para eu passar e perguntando por que não pedi licença, brigando porque estávamos atravessando aquela pista imensa com todas aquelas crianças”, relata.
Apesar da ação ter sido fruto de um acerto com Santa Dulce, Lia afirma que a então freira ficou espantada porque não esperava uma procissão nas ruas. O objetivo era, conforme ela conta, que os alunos levassem um tijolo cada, sem alarde – e muito menos desfile. O espanto, no entanto, foi rapidamente ofuscado pelo sucesso da iniciativa, que mobilizou a imprensa e a população. “No outro dia começou a chegar gente para doar bloco, cimento e areia. Dessa forma, ela foi levantando a construção”, diz.
No meio da marcha, estava a estudante Liana Rodrigues, à época com seis anos. Hoje, com 46, ela é professora da escola e confessa que as memórias daquele dia são fragmentadas, embora tenham ganhado um novo significado com o passar dos anos. “Lembro que saímos daqui levando os tijolos e tinham muitos pais e alunos, e Irmã Dulce recebeu cada um na porta com um agradecimento. Quando criança, a parte bacana daquele dia era a animação por estar na rua fazendo algo diferente. Hoje, isso simboliza a importância de fazer a caridade. Gosto muito de levar os meninos para conhecerem a história”, afirma.
Essa não foi a única participação de Pró Lia nas ações solidárias de Santa Dulce dos Pobres. Mas, antes mesmo de ganhar o apelido que se tornaria sua marca, Lia não escondia a vocação que tinha para ajudar. Natural de Jacobina, cidade no norte da Bahia, ela foi criada em Alagoinhas, no nordeste baiano, mas fincou raízes mesmo em Salvador, onde se mudou aos 22 anos para cursar a Faculdade Católica de Direito. Ao exercer a carreira, sofreu a decepção causada pela injustiça social com a qual se deparava, e decidiu, aos 30 anos, começar a trabalhar com educação.
Em 1968, Lia conta que a Escola Santa Rita começou a funcionar com 35 alunos, que eram divididos em duas turmas no turno da manhã e da tarde. Na convivência diária com eles, ela descobriu o amor pelo ensino e deu um jeito de uni-lo com a solidariedade, fosse com a dedicação especial aos alunos que tinham maior dificuldade no aprendizado, fosse no estímulo para que a classe pedisse aos pais a ajuda requisitada por Irmã Dulce.
“Depois da campanha do tijolo, ela me pediu ajuda para outra campanha. Então, eu fazia um bilhete para a mãe dos meninos darem alguma coisa a Irmã Dulce, para que depois ela distribuísse no Largo de Roma para os pobres. Os meninos saíam com o papel, por volta das 10h da manhã, e iam pedindo de porta em porta”, conta Lia.
No ano de 1986, a professora encontrou uma nova missão: traduzir o amor que nutria pela seleção brasileira de futebol em matéria – valendo nota, é claro. Foi assim que ela idealizou o famoso bandeirão de aproximadamente 3.000 m² de extensão da Escola Santa Rita, que em todo ano de Copa do Mundo ganha ajustes dos professores e alunos como parte do projeto pedagógico da instituição.
A primeira bandeira nasceu com 500 m² e, diante da aprovação do projeto, ficou estabelecido que a cada quatros anos ela aumentaria de tamanho. Atualmente, ela forra a Rua Monsenhor Basílio Pereira por inteiro – e orgulha a professora. “É uma festa”, resume, sorridente.
Além de manter o legado através da educação, Pró Lia tem como objetivo de vida também espalhar as ações de Santa Dulce. Não à toa, neste ano a escola tem como projeto o envio dos alunos até a igreja da santa baiana, para que conheçam parte do seu legado. “Eles têm que espalhar as histórias de Irmã Dulce, porque eu já estou velha. Vivo para ajudar na igreja e o que posso fazer para o bem, eu faço”, finaliza.